A reforma tributária, instrumentalizada pela Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, trouxe diversas inovações de modo a inserir o sistema tributário nacional na modernidade da tributação, essencialmente sobre o consumo. Nesse panorama, as novas disposições constitucionais acerca da estrutura tributária brasileira estão alicerçadas nos princípios da simplificação, neutralidade e não cumulatividade.
A preocupação do constituinte derivado com tais princípios se evidencia na adoção do chamado split payment (pagamento repartido). Trata-se de um modelo tecnológico que tem o objetivo de tornar a arrecadação do IBS e da CBS mais eficiente, assim como garantir ao adquirente dos bens e serviços o seu direito ao crédito do tributo.
A EC nº 132/2023 inseriu o referido modelo no texto constitucional da seguinte forma:
“Seção V-A
Do Imposto de Competência Compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios
Art. 156-A. Lei complementar instituirá imposto sobre bens e serviços de competência compartilhada entre Estados, Distrito Federal e Municípios.
…………….
§ 5º Lei complementar disporá sobre:
II – o regime de compensação, podendo estabelecer hipóteses em que o aproveitamento do crédito ficará condicionado à verificação do efetivo recolhimento do imposto incidente sobre a operação com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços, desde que:
a) o adquirente possa efetuar o recolhimento do imposto incidente nas suas aquisições de bens ou serviços; ou
b) o recolhimento do imposto ocorra na liquidação financeira da operação;”
Com o objetivo de regulamentar a disposição transcrita acima, o PLP 68/24 (em tramitação no Senado e já aprovado na Câmara dos Deputados) esclarece os principais pontos sobre o split payment, quando trata do recolhimento do IBS e CBS na liquidação financeira da operação — artigos 27, III; 50 e 51.
O split payment nada mais é do que a divisão dos recebíveis entre os players envolvidos em determinada operação. Essa modalidade de recolhimento já funciona há algum tempo na área de marketplaces, inclusive por exigência regulatória, onde há a repartição do pagamento recebido entre o fornecedor e a empresa e-commerce mediadora.
O que se pretende com a incorporação do modelo ao nosso sistema tributário é utilizá-lo para que seja realizada a repartição do valor devido ao fornecedor do bem ou serviço e do valor devido ao Fisco, ou seja, o recurso pago pelo adquirente será divido entre o IBS/CBS devido ao Comitê Gestor e a base tributável direcionada ao fornecedor.
Neste modelo, o contribuinte fornecedor do bem ou serviço não recebe em seu fluxo de caixa os recursos destinados à quitação da obrigação tributária, sendo esta repassada diretamente ao Estado pelos prestadores de serviços de pagamento.
Trata-se de uma quebra de paradigma para a fiscalização e arrecadação tributária, bem como para o cumprimento das obrigações acessórias por parte dos contribuintes. O modelo será baseado no registro de informações recíprocas entre os documentos fiscais eletrônicos (DF-e’s) e o meio de pagamento realizado. Isso significa que haverá uma integração das bases de dados dos DF-e’s e do pagamento, além dos dados cadastrais, apuração e distribuição da receita.
Fundamentado no princípio da não cumulatividade, o sucesso da ferramenta só é tangível em virtude do modelo adotado pelo PLP nº 68/24, sob os seguintes aspectos:
- apropriação do crédito vinculada ao pagamento do tributo (artigo 28);
- creditamento amplo, com mínimas exceções expressamente previstas na lei complementar, como bens e serviços de uso e consumo pessoal e operações imunes, isentas e sujeitas a alíquota zero (artigos 28, 29 e 30);
- cálculo do tributo “por fora” (artigo 12, § 2º, I).
Desse modo, o contribuinte somente poderá apropriar os créditos do IBS/CBS quando ocorrer o pagamento dos valores dos tributos sobre as operações nas quais seja adquirente do bem ou serviço. Tal disposição vai ao encontro da solução do split payment, que proporcionará ao contribuinte a garantia do aproveitamento do crédito decorrente de suas aquisições de bens e serviços.
Mais do que uma ferramenta arrecadatória, há uma salvaguarda para o aproveitamento dos créditos do IBS/CBS por parte dos contribuintes. Somado a isso, a retenção somente ocorrerá nos casos em que o fornecedor não tiver créditos suficientes para quitação do tributo de forma a minimizar o impacto no seu fluxo de caixa e evitar o acúmulo de créditos na apuração do contribuinte.
A sistemática a ser posta em funcionamento para o IVA brasileiro consiste, portanto, na segregação do pagamento feito pelo adquirente ao fornecedor, por meio do sistema de pagamento. O fornecedor emite o documento fiscal, o adquirente realiza a liquidação financeira da operação, que será objeto de repartição — parte direcionada ao fornecedor, parte direcionada ao Comitê Gestor (IBS) e Receita Federal (CBS).
Tudo isso através de uma comunicação integrada entre o documento fiscal eletrônico e o meio de pagamento, com informações e vinculações recíprocas. Neste processo, haverá uma consulta em tempo real à administração tributária para verificação dos créditos que o contribuinte possui junto ao Fisco. Assim, o Comitê Gestor e a Receita Federal informarão à instituição de pagamento a situação do adquirente. Não havendo créditos a apropriar, o valor integral do tributo será objeto do split payment e retido pela instituição financeira.
Podemos esquematizar o modelo, resumidamente, da seguinte forma:
Importante salientar que, em obediência ao disposto no PLP 68/24, o split será realizado simultaneamente à liquidação financeira da operação em questão. Portanto, se estivermos diante de uma venda a prazo, o valor do tributo será retido a cada parcela, evitando-se assim prejuízo ao fluxo de caixa das empresas e mantendo hígido o cumprimento ao princípio da neutralidade.
Benefícios do modelo
A adoção do split de pagamento proporcionará uma redução do hiato de conformidade do sistema, reduzindo fraudes e a sonegação, além de inibir a emissão de notas frias por empresas “noteiras”. Este é um problema considerável que os fiscos estaduais têm de lidar no âmbito do ICMS — constituição de pessoas jurídicas formadas por sociedade em nome de terceiros (laranjas) com o intuito único e exclusivamente de emissão de documentos fiscais para geração de crédito do imposto aos destinatários, de forma que não há a efetiva circulação de mercadorias que seriam por eles acobertadas. Essa prática é extremamente nociva à fazenda pública, pois as operações simuladas geram créditos indevidos que são apropriados pelos contribuintes de forma fraudulenta.
Com a premissa do crédito vinculado ao pagamento adotada pelo PLP 68/24, efetivando previsão constante da Emenda Constitucional nº 132, o Fisco terá maiores condições de enfrentar fraudes como a citada acima. Somado a isso, a ferramenta do pagamento “splitado” traz ainda mais efetividade no combate à fraude e sonegação, na medida em que garante ao adquirente o direito imediato a apropriação do crédito decorrente da operação, sem necessidade de comprovação posterior, dado que o pagamento do tributo já ocorrerá de forma automática no momento da liquidação financeira da transação.
Além disso, percebe-se também como vantagem na utilização do modelo a redução no custo de compliance e conformidade das empresas, bem como das obrigações acessórias. É fato que, embora todo o controle e operacionalização da medida sejam realizados pela administração tributária (Comitê Gestor e Receita Federal), as empresas terão de realizar também seu controle interno na questão dos débitos e créditos do IBS/CBS. Contudo, tratar-se-á somente de uma análise de verificação das informações apresentadas pelo fisco, já que serão fornecidos aos contribuintes a apuração assistida, com declaração pré-preenchida, submetendo-a a empresa para aceite, reduzindo drasticamente a complexidade no cumprimento das obrigações acessórias.
Outrossim, há a expectativa que padrão de pagamento repartido gere redução não só das obrigações acessórias, como também da obrigação principal. Segundo informações da Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária (Sert), subordinada ao Ministério da Fazenda, a aplicação do split payment poderá reduzir a alíquota de referência em 2% [1].
Nessa linha, pode-se evitar ainda a instauração da sistemática da substituição tributária para frente como tem sido aventado por algumas instituições, modalidade que causou extensos e custosos litígios na vigência da cobrança do ICMS, além de grande insegurança jurídica. Podemos citar como exemplo a tese firmada somente em 2018 de que é devida a restituição do ICMS pago a maior no regime de substituição tributária para a frente na hipótese em que a base de cálculo efetiva da operação se der em monta inferior àquela presumida [2]. Foram necessárias algumas décadas para a pacificação deste entendimento, cuja indefinição causou reais prejuízos aos contribuintes no decorrer do tempo. Assim, por meio do regime do split payment funcionando a contento, esvazia-se a discussão da previsão de substituição tributária para frente no contexto do IBS/CBS, em função da eficiência na arrecadação vinculada ao pagamento.
É verdade que o modelo não abrangerá todos os métodos de pagamento, excluindo-se evidentemente aquelas transações realizadas em dinheiro e fora da rede bancária. Entretanto é inegável que o uso dessa tecnologia propiciará um avanço significativo em diversos aspectos da relação jurídico-tributária do IBS/CBS, seja no âmbito da sua sujeição ativa, como também na sujeição passiva, principalmente com o crescimento vertiginoso das operações de comércio e pagamento eletrônico, com uso de cartões de débito/crédito e especialmente do Pix.
Modelo inovador
Uma das críticas mais flagrantes do modelo proposto é a experiência polêmica de algumas nações europeias. Alguns estudos mostram que a experiência internacional revela um impacto negativo no fluxo de caixa das empresas, além de riscos relacionados a aumento de encargos administrativos. A sistemática foi testada e posteriormente abolida em países como a Bulgária e a Romênia. O split payment foi estabelecido em 2003 na Bulgária com o objetivo de combater uma fraude fiscal conhecida como “fraude carrossel”. Porém, concluiu-se que o modelo criou complexidades na apuração do IVA, sendo abandonado. Já na Romênia houve rejeição por parte da Comissão Europeia quanto ao formato pretendido e foi encerrado desde 2020 [3].
Interessante destacar, porém, que estudo realizado por uma das empresas Big Four — Deloitte —, em que pese ter concluído que os efeitos negativos podem superar os benefícios trazidos pelo split payment, constatou também que uma concepção diferente do referido mecanismo, com novas tecnologias, pode chegar a resultados consideravelmente diferentes [4].
Contudo, vale dizer que o regime que está sendo proposto para o IVA brasileiro difere em alguns pontos importantes dos modelos testados mundo afora. Primeiramente, deve-se considerar que o Brasil é um dos países mais avançados do mundo em relação a tecnologias aplicadas na administração tributária, com sistemas de processamento de dados bem evoluídos e eficientes. Nessa mesma perspectiva, a gestão dos documentos fiscais eletrônicos também destoa de outros parâmetros internacionais.
A título de exemplo, a implementação da nota fiscal eletrônica no início dos anos 2000 elevou a nossa administração tributária a um patamar diferenciado do restante do mundo, sendo aperfeiçoada ao longo dos anos até chegarmos atualmente a uma estrutura cada vez mais segura, eficiente e integrada. Inclusive, a integração é a principal aposta para o funcionamento eficaz do modelo. É nisto que reside o trabalho dos técnicos da administração tributária junto às instituições financeiras para a construção do modelo doméstico de split payment.
Além de todo o esforço e know-how das equipes empenhadas na construção do modelo operacional do IBS/CBS no âmbito do Encat e da Sert, conta-se ainda com a terceira versão da modernização da gestão fiscal (Profisco III), com a previsão de investimentos de cerca de R$ 10 bilhões visando à implementação da reforma tributária na estrutura das administrações tributárias brasileiras, sustentada por projetos e soluções de transformação digital e inteligência artificial aplicada à gestão fiscal.
Desse modo, torna-se inequívoco que a implementação do split payment para o IVA Dual poderá ser capaz de revolucionar a gestão tributária no âmbito do IBS/CBS, tanto sob a ótica da administração tributária, por meio de uma atuação mais eficiente e justa no campo arrecadatório e de controle, assim como sob o enfoque do contribuinte, com a garantia de reconhecimento de seu direito ao crédito e redução dos custos de conformidade, revelando assim as premissas de simplicidade, transparência e eficiência enunciadas pelos condutores da reforma tributária.
[1] Disponível: https://exame.com/economia/appy-modelo-da-tributaria-que-coibe-fraude-explica-reducao-de-mais-de-2-pontos-na-aliquota/[2] É devida a restituição da diferença do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS pago a mais no regime de substituição tributária para frente quando a base de cálculo efetiva da operação for inferior à presumida. (Repercussão Geral – Tema n. 201/STF – RE 593849 / MG)[3] Teixeira, Alexandre Alkmim. To Split or not to Split: o Split Payment como Mecanismo de Recolhimento de IVA e seus Potenciais Impactos no Brasil. Disponível em: https://revista.ibdt.org.br/index.php/RDTA/article/view/2139/1923#:~:text=Na%20It%C3%A1lia35%2C%20a%20scissione,por%20determinadas%20pessoas%20espec%C3%ADficas36.[4] UNION., European Commission. Directorate General For Taxation And Customs; DELOITTE.. Analysis of the impact of the split payment mechanism as an alternative VAT collection method: final report.. European Comission, [S.L.], v. 0, n. 0, p. 1, dez. 2017 – disponível em: https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/b87224ad-fcce-11e7-b8f5-01aa75ed71a1/language-en
Conjur – Arthur Barbosa Cascudo Rodrigues