A solidão da logística reversa na reforma tributária

Debatida através da EC 132/23, a Reforma Tributária, já é uma realidade e através dela espera-se o desenvolvimento de um ambiente de maior confiança para os negócios, transparência e justiça fiscal para o país.

Resumidamente, isso é o que está sendo comum de se ler na maioria das mídias de comunicação a respeito da Reforma Tributária, contudo quando se busca compreendê-la sob contexto ambiental, mais ainda, neste momento de crise climática e ainda queimadas e desmatamento se alastrando pelo país impunemente e degradando o meio ambiente, como tributarista e cidadão, a avaliação seria que  a Reforma Tributária não se mostra em consonância com as políticas ambientais que se fazem urgentes no país, por exemplo, quando contribui para isolar a logística reversa, esquecendo que a solidão advinda deste isolamento, aumenta o risco de morte prematura do meio ambiente em que atividades econômicas poderiam frutificar sob sua égide.

Não é necessário ser um expert em tributos para se chegar a essa conclusão; basta conhecer um pouco o PLP 68/24 enviado pela Câmara dos Deputados ao Senado. Da sua leitura, com mais de 500 artigos, constata-se que tanto o legislador como os técnicos do fisco pouco fizeram para colaborar na busca de maior aderência da legislação tributária à legislação ambiental vigente no país, perde-se com isso a oportunidade de transformar o tributo em um importante instrumento de política aplicada à proteção do meio ambiente e à saúde humana.

A percepção técnica é que continua a prevalecer o interesse arrecadatório quando comparado com a tímida iniciativa de utilizar o tributo como incentivo às boas práticas direcionadas ao meio ambiente, o que, em consequência, resulta em deixar à própria sorte não a população de CPFs e CNPJs, mas outra, tão importante quanto esta, que é aquela que ainda insiste em resistir à custa da própria vida e pode ser encontrada habitando no solo, no ar e nas águas dos rios e mares que banham nosso país.

A tentativa acanhada de utilizar o tributo como instrumento de proteção ao meio ambiente pode ser notada na única citação no PLP 68/24 sobre a reciclagem e a logística reversa e ela consta no artigo 165, o qual prevê a possibilidade de crédito presumido do IBS e a CBS ao contribuinte que adquirir resíduos sólidos de coletores incentivados para utilização em processo de destinação final ambientalmente adequada.

A menção à reciclagem e  logística até começou bem no caput do artigo, entretanto, sem maiores explicações técnicas tributárias ou científicas, no parágrafo 3º deste artigo, consta que os referidos créditos não serão concedidos quando for relacionado às aquisições, dentre outros, de resíduos de embalagens usadas de agrotóxico, embalagens usadas de medicamentos, pilhas e baterias usadas, pneus usados, produtos eletroeletrônicos de uso doméstico usados, embalagens e dos óleos lubrificantes usados, assim como as lâmpadas fluorescentes usadas, etc.

Será essa a solução ambiental tributária para o país?

Restringir os créditos terá como consequência inibir investidores para a criação de novas indústrias voltadas à reciclagem e logística reversa e, não só isso, a falta de incentivo deverá tornar os produtos recicláveis menos competitivos quando equiparados aos produtos semelhantes fabricados sem material reciclável, isso parece tão óbvio; o resultado é de risco de sobrevivência para os atuais recicladores e operadores de logística reversa, o que, em outras palavras, implica dizer mais lixo inundando os nossos rios, campos e lixões já entulhados de materiais que poderiam retornar ao ciclo de comercialização.

Da forma como se encontra a Reforma Tributária, se nada for feito, esta incentivará mais ainda a atividade extrativista, pois não é necessário ser futurólogo para perceber que o produto reciclado recebendo a tributação prevista perderá competividade com o produto retirado da natureza e o resultado é cristalino: mais queimadas e desmatamentos ilegais.

Ainda nesse contexto, no artigo 404, a proposta da criação do Imposto Seletivo – IS -,  que terá sua incidência sobre bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, poderia ter atenuado o impacto do isolamento da logística reversa, mas, mesmo nesse momento, perdeu-se novamente a oportunidade de trazer aderência da legislação tributária à Lei 12.305/2010, que instituiu política nacional de resíduos sólidos, pois poderia ter criado mecanismos para que os setores relacionados a esses bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente invistam em reciclagem e logística reversa dos seus próprios segmentos e de outros relacionados.

São poucas as empresas de reciclagem, recuperação e logística reversa no país quando se compara com outros países e considerando que estas devem receber resíduos provenientes de todos os lugares do vasto continente brasileiro, não é demais dimensionar o desafio hercúleo de logística quando se imagina a necessidade, por exemplo, de se coletar e deslocar para fins de tratamento ambiental adequado todas as embalagens usadas de agro defensivos no país, isso sem contar as pilhas e baterias usadas, os eletroeletrônicos usados, entre outros materiais.

A legislação tributária federal e dos estados, infelizmente, não colabora para facilitar o trânsito destes materiais inservíveis na forma em que se encontram e, a nosso ver, uma possibilidade seria deixar a formalização de emissão de notas fiscais e escrituração fiscal para quando estes materiais entrassem nas indústrias voltadas a logística reversa, promovendo a tributação após a saída do produto transformado, desmontado ou recuperado.

Conforme se constata no artigo 44 do PLC, optou-se por se repetir o que se faz há quase 40 anos e citamos como exemplo a necessidade de um produtor rural emitir Nota Fiscal Eletrônica-NF-e de devolução de embalagem vazia e usada de defensivo agrícola, sobre a qual inclusive é obrigatória a sua devolução por força da Lei 12.305/2010 e Decreto Federal 4.074/02, o mesmo ocorrendo com as baterias usadas depositadas por consumidores em caixas de papelão existentes shoppings e supermercados, como incentivo a não as  jogar no lixo comum e estas contaminarem o solo e rios.

Como esperar que um produtor rural ou mesmo cooperativa ou unidades de coleta que se instalam em lugares longínquos do país e sem estrutura e internet tenham profissionais fiscais especializados em preenchimento de nota fiscal eletrônica?

E não só isso, o artigo 47 prevê a necessidade de se escriturar livros fiscais digitais e apurar  o IBS e a CBS, o que eleva a complexidade para toda a cadeia da logística reversa na fase que antecede sua entrada nos estabelecimentos que operam logística reversa e pior quando se projeta a fase de transição, dos anos de 2026 a 2033, em que conviveremos com o ICMS, o IBS e a CBS. Sequer, aqui, se explora o polêmico mecanismo do “split payment”, pois nas operações com os resíduos citados de pilhas usadas e embalagens usadas de defensivos agrícolas, estas trafegam sem valor comercial, sendo que no PLP 68/24 ficou a dúvida se seria necessário a emissão de NF-e e escrituração fiscal.

A insegurança quanto à emissão de nota fiscal e a escrituração do IBS e da CBS, nos casos acima mencionados, ficam potencializados quando vistos à luz do inciso II do art. 4º do PLP 68/24, pois não existe no projeto de lei uma definição do que seja “operações não onerosas com bens ou com  serviços”, mas conhecendo-se a cultura fiscal em nosso país, a tendência será do fisco, independentemente de definição de conceitos, pelo princípio da atividade vinculada, exigir nota fiscal com a respectiva tributação do IBS e a CBS e, igualmente, exigir também a escrituração fiscal destes documentos.

A Reforma Tributária não avançou para perceber que amparados pelo princípio constitucional da autonomia de que gozam de se auto legislar e autoadministrar, em especial, os Estados, organizados com as suas máquinas de fiscalização, continuarão a interpretar, como já fazem hoje, em muitos estados da federação, a necessidade de nota fiscal na movimentação de resíduos usados, isso se não exigirem outros documentos na forma do § 3º do artigo 44.

Impor a necessidade de emissão de nota fiscal e tributação para o trânsito de resíduos com valor de lixo, enquanto nesta fase, que poderão talvez ser objeto de transformação ou recuperação em um bem de valor não colabora para simplificar e incentivar a logística reversa. Não será através dessa nota fiscal referente a resíduos que o fisco evitará a sonegação fiscal e aumentará a arrecadação de tributos ou resolverá seus problemas financeiros orçamentários.

Para os resíduos sólidos, sujeitos à logística reversa, o PLP 68/24 contribuiria significativamente para nossa política ambiental prevendo que a Nota Fiscal poderia ser  dispensada desde que o resíduo estivesse acompanhado do MTR – Manifesto de Transporte de Resíduos -, que é um documento de emissão obrigatória, numerado, com a finalidade de controle do transporte de resíduo no país, atualmente vigente com controle pelo SINIR- Sistema Nacional de Informações sobre a Gestão dos Resíduos Sólidos.

Diante deste cenário de extrema dificuldade em se olhar a Reforma Tributária como uma oportunidade valiosa para a conciliação das políticas tributárias com as ambientais, a esperança é que o Senado, onde no momento se encontra o Projeto de Lei da Reforma Tributária, atue não só do ponto de vista político-tributário, mas também tendo em vista a vontade de colaborar para salvar o que consta na atmosfera do  PLP 68/24, um item importante e caro para a saúde dos seres vivos que é a logística reversa, a reciclagem e a recuperação de resíduos, incentivando sua proteção através de desobrigação fiscal tributária como expressão de uma visão política contemporânea de tributação verde e economia circular, exemplo para o planeta.

Fonte: Portal Contábeis