Cinco anos se passaram desde que escrevemos o primeiro de uma série de, agora, sete artigos sobre o julgamento da célebre Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 49 no Supremo Tribunal Federal e a questão da incidência de ICMS sobre transferências de estabelecimentos entre a mesma empresa.
Uma questão singela, que há décadas parecia pacificada na jurisprudência, como escrevemos na abertura do nosso primeiro artigo: “Há uma infinidade de dúvidas e controvérsias no Direito Tributário brasileiro. Mas, se há alguma certeza bem consolidada, é a de que o ICMS não pode ser exigido sobre transferência de bens entre estabelecimentos de uma mesma empresa”.
A saga que se seguiu nesse assunto depois dessa abertura, no entanto, é bastante representativa da famosa frase, atribuída ao ministro Pedro Malan: “No Brasil, até o passado é incerto”.
Para resumir cinco anos de idas e vindas em três atos:
(1) inicialmente, em 2021, o STF julgou improcedente a ADC 49 e declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos da Lei Complementar nº 87/1996 que previam a incidência de ICMS sobre transferência de mercadorias;
(2) em 2023, o STF julgou os embargos de declaração na ADC 49 e modulou os efeitos da decisão, para que ela valesse apenas a partir de 1º/1/2024, exceto para contribuintes que houvessem ajuizado ação até 19/4/2021, instaurando uma controvérsia sobre a possibilidade de os fiscos estaduais virem a exigir retroativamente o ICMS nas transferências quando não houvesse processo administrativo ou ação ajuizada até essa data;
(3) agora, em 22/8/2025, o STF concluiu o julgamento dos embargos de declaração no RE 1.490.708 (Tema nº 1367 da Repercussão Geral) para definir o alcance da modulação na ADC 49 e fixou a seguinte tese: “a modulação dos efeitos estabelecida no julgamento da ADC nº 49/RN-ED não autoriza a cobrança do ICMS lá debatido quanto a fatos geradores ocorridos antes de 2024 em relação aos quais não tenha havido o pagamento do tributo”.
O tribunal, nesse último julgamento, felizmente fez uma análise minuciosa de todo o seu histórico de decisões a respeito do tema, tendo o ministro Dias Toffoli, redator do voto divergente, muito bem concluído que “Em nenhum momento, como se nota, o Tribunal, na modulação de efeitos estabelecida no julgamento da ADC nº 49/RN-ED, teve o propósito de ampliar a efetiva arrecadação das unidades federadas mediante autorização da cobrança do imposto, com base em norma inconstitucional, quanto a fatos geradores ocorridos antes de 2024 e em relação aos quais o tributo não foi pago. Atente-se que permitir essa cobrança contraria a intenção de se preservarem as operações praticadas e estruturas negociais concebidas pelos contribuintes. Afinal, com isso, os contribuintes seriam pegos de surpresa, com uma cobrança de tributo que era inimaginável”.
Por isso, escrevemos novamente aqui, ainda em 2023 quando o STF examinava os segundos embargos de declaração na ADC 49, que “entender a modulação da ADC 49 como uma autorização do STF para legitimar cobranças retroativas de ICMS em simples deslocamentos de mercadorias, em que nem o STF, nem o STJ, nem mesmo qualquer outro Tribunal do País jamais reputou válida a cobrança do imposto é simplesmente entregar o troféu ao perdedor. Ao vencedor, nem as batatas”.
No entanto, o STF rejeitou aqueles embargos de declaração por falta de legitimidade ativa do amicus curiae e o cenário parecia bastante nebuloso em 2024, quando escrevemos aqui um artigo intitulado: “Impossibilidade de cobrança retroativa de ICMS nas transferências de mercadorias”, alertando que “há notícia de precedentes em diversos tribunais do País e de julgados do próprio STF, que estariam simplesmente julgando improcedentes ações ajuizadas após 19 de abril de 2021, pelo simples fato de serem posteriores à data de corte da modulação. Na prática, essas decisões estariam, por via transversa, entendendo que o Fisco poderia, sim, cobrar o ICMS em situação que, há décadas, tem sido repelida pela jurisprudência, inclusive pela própria ADC 49”.
O veredito
Houve certa apreensão quando o STF iniciou o julgamento do Tema nº 1.367 justamente para definir o alcance da modulação de efeitos na ADC 49 e, originalmente, apenas limitou-se a reiterar sua jurisprudência acentuando que: “A não incidência de ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, estabelecida no Tema 1.099/RG e na ADC 49, tem efeitos a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a data de publicação da ata de julgamento da decisão de mérito da ADC 49 (29.4.2021)”.
Mas, felizmente, a situação mudou. Em boa hora, a corte meditou sobre o tema e encontrou a melhor solução, também refletida no lapidar voto-vista do ministro André Mendonça, em que se lê: “Percebe-se que o móvel daquela alteração de efeitos não era dar um prazo adicional — relembre-se, o julgamento dos embargos na ADC ocorreu em 2023 — para que os estados prosseguissem com uma cobrança manifestamente inconstitucional (…). A problemática que se entrevê, agora, nesta terceira reafirmação de jurisprudência é a de que as Fazendas Estaduais, ainda prosseguem com as cobranças do ICMS — até o exercício de 2024 — sob a interpretação de que aquela modulação da ADC nº 49/RN autorizaria a continuidade das autuações até aquele ano de 2023, o que não é o caso”.
O veredito do STF está dado: o ICMS não incide sobre transferências de ICMS. Quem pagou o tributo antes de 2024 e não apresentou contestação administrativa ou judicial até 19.4.2021 não pode repetir o indébito. Todavia, o Estado não pode cobrar retroativamente valores por força da modulação de efeitos decretada na ADC 49.
É de se lamentar, todavia, que tenham sido necessários quase cinco anos de controvérsias para que se chegasse a essa definição para um tema que parecia para lá de pacificado no STF e no STJ há décadas.
Esforço hercúleo
Todas essas idas e vindas no julgamento da ADC 49 e as respectivas incertezas dizem muito sobre as vicissitudes das centenas de julgamentos que ocorrem simultaneamente no Plenário Virtual da Corte e o crescimento exponencial das modulações de efeitos, que, de exceção, se converteram quase em regra geral em julgamentos de causas tributárias, como mostram estudos recentes.
Essas questões merecem uma detida reflexão. Percebe-se o esforço hercúleo da corte de julgar as inúmeras causas relevantes que lhe são submetidas em um prazo razoável. Contudo, a demanda por um volume gigantesco de decisões revela um tribunal tendo que examinar e, por vezes, reexaminar um mesmo assunto várias vezes para conseguir ouvir a razão dos contribuintes e, mesmo, compreender e definir o que a própria corte decidiu. O tema de mérito da ADC 49 – inconstitucionalidade do ICMS nas transferências de mercadorias – já estava pacificado pelo STF há décadas, inclusive desde 2020 pelo julgamento do Tema 1.099 da Repercussão Geral.
No entanto, com a modulação de efeitos e os recortes feitos nessa modulação, o que se viu foi uma complexidade e uma insegurança minando a estabilidade de décadas de uma jurisprudência pacífica.
As modulações de efeitos, concedidas sob o fundamento genérico e abstrato de defesa do erário e de se evitar a litigância, estão empiricamente levando justamente ao cenário diverso do pretendido.
Do lado do Fisco, verifica-se uma certa imprudência fiscal por parte dos entes que se valem da inconstitucionalidade útil diante da certeza da impunidade que virá com a modulação de efeitos. Um caso emblemático é a série de autuações retroativas que foram lavradas nesse período, cobrando o ICMS sobre transferências de mercadorias. Autuações que há décadas sequer eram lavradas, com base na jurisprudência absolutamente estável, voltaram à tona, de forma oportunista.
Do lado do contribuinte, verifica-se o estímulo à litigância: qualquer tema afetado para julgamento gera uma verdadeira “corrida aos tribunais”, pelo receio de que haverá uma modulação de efeitos que irá prejudicar o direito daquele que não ajuizou sua ação a tempo. A situação chegou a ponto de ter se verificado uma enxurrada de ações judiciais para se afastar a cobrança do ICMS sobre a transferência de bens, quando o STF foi apreciar o tema, mesmo quando vários contribuintes simplesmente não recolhiam o imposto nessa situação e não vinham sendo cobrados pelos Estados.
O STF poderia refletir com mais vagar sobre esses pontos, evitando-se que a modulação de efeitos acarrete menos responsabilidade fiscal e maior insegurança jurídica.
Mas, o mais importante, de tudo, é que se espera que com esse julgamento dos embargos de declaração do Tema 1.367, finalmente tenha chegado ao fim o julgamento da ADC 49, sem que haja novas reviravoltas.
Repita-se de uma vez por todas: o ICMS não incide sobre transferências de mercadorias e não se pode autorizar, a esta altura, que os Fiscos desvirtuem o julgamento da ADC 49, inclusive como vêm fazendo em alguns casos, como relatamos no nosso penúltimo artigo da série, aqui. Chamamos a atenção para o que denominamos de “giro de 360 graus”, em que as autoridades fiscais estaduais têm se valido de interpretações enviesadas da ADC 49 e da LC 204/2023 para continuar cobrando ICMS sobre essas transferências, ao argumento de que o STF teria obrigado o contribuinte a transferir os créditos de ICMS nessas transferências.
Ora, como defendemos naquela oportunidade, “é claro, na decisão proferida pelo STF na ADC 49, que a transferência do crédito de ICMS é um direito do contribuinte. Portanto, tal transferência deve ser facultativa, e não obrigatória”. Em resumo, o contribuinte poderá tanto transferir o crédito de ICMS do Estado de origem para o Estado de destino quanto não transferir e não destacar qualquer ICMS nessa transferência. Poderá também, alternativamente, tratar essa transação como equiparada a uma operação tributada, destacando o ICMS sobre o valor da operação, nos termos do artigo 12, § 5º, da LC 87/96, se isso lhe for conveniente.
O que se espera é que com esse julgamento e com essas conclusões esse tema finalmente chegue a um fim. E a um final sem cobranças retroativas, como vínhamos defendendo há tantos anos.
Aliás, com a reforma tributária – em relação à qual tanto nos dedicamos – começando sua fase de transição no próximo ano, terá início, também, o fim do ICMS. Para evitar que essas controvérsias prossigam, há expressa previsão, no artigo 6º, da LC 214/2024, de que o IBS e a CBS não incidem sobre simples transferências entre estabelecimentos do mesmo contribuinte. Com isso, espera-se que o nosso futuro seja menos incerto do que o que tem sido o nosso passado. E que essa série de artigos possa, finalmente, ter chegado ao seu último capítulo com um final feliz.
Fonte: CONJUR